terça-feira, 23 de junho de 2009

A identidade narrativa e o problema da identidade pessoal

«Em primeiro lugar, as ficções narrativas permanecem variações imaginárias em torno de um invariante, a condição corporal que se pressupõe constituir a mediação inultrapassável entre si próprio e o mundo. As personagens do teatro e do romance são entidades semelhantes a nós, agindo, sofrendo, pensando e morrendo. Dito de outra forma, as variações imaginativas no campo literário têm como horizonte incontornável a condição terrestre. Não nos esquecemos do que Nietzsche, Husserl e Heidegger disseram sobre o tema da terra, compreendida não como planeta, mas como nome mítico do nosso ser no mundo. Porque é que é assim? Porque as ficções são imitações - por mais errantes ou aberrantes que se queira - da acção, isto é, do que conhecemos já como acção e interacção num ambiente físico e social. Por comparação, os puzzling‑cases de Parfit são variações imaginativas que fazem aparecer como contingente a própria invariante de uma hermenêutica da existência. E qual é o instrumento deste contorno? A tecnologia; não a tecnologia efectiva, mas o sonho da tecnologia. As variações imaginativas das narrativas de ficção dirigem‑se sobre a relação variável entre ipseidade e mesmidade, as variações imaginativas da ficção científica referem‑se a uma única mesmidade, a mesmidade desta coisa, desta entidade manipulável, o cérebro. Uma análise impessoal da identidade aparece, assim, dependente de um sonho tecnológico no qual o cérebro foi assumido como o equivalente substituível da pessoa. O verdadeiro enigma é, então, de saber se nós somos capazes de conceber variações tais como a corporeidade, - como nós a conhecemos, a saboreamos ou a sofremos, - enquanto variável, uma variável contingente, sem que se tenha de transpor as nossas experiências terrestres para a própria descrição do caso em questão. Pela minha parte, pergunto‑me se não estamos a violar algo que é mais do que uma regra, que uma lei, ou ainda que um estado de coisas, mas que é a condição existencial sob a qual existem regras, leis, factos. Esta violação pode ser a razão última que faz com que essas experiências não sejam somente irrealizáveis, mas se o fossem deveriam ser interditas.»

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