quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O canto das cigarras


Gosto de ouvir o canto das cigarras.
Tem uma vibração característica que me aquece a alma e exala, na perfeição, sentires e sabores da terra e da vegetação. Lembra-me cheiros de verão, do alecrim, da pimenteira e do rosmaninho, que não existem no norte da Europa.
As cigarras cantam sem esperar nada em troca, expressam o prazer de viver e celebram a vida, com um tempo musical allegretto grazioso, que nos prepara para o mundo onírico de Morfeu, o moldador de sonhos.
Tenho uma relação diferente com as formigas. Entram silenciosas nas nossas casas, sem pedir licença e apropriam-se do que lhes parece valioso, impiedosamente. Não cantam para nós, nem nos alegram de alguma forma. Na realidade, roubam o que é nosso e nada nos dão em troca. Vivem numa organização eussocial onde o indivíduo serve dogmaticamente o formigueiro, entidade abstrata coletora de víveres, cuja missão e visão consiste exclusivamente em manter a espécie.

Há dogmas que nos ficam engramados desde a nossa tenra infância, com histórias aparentemente inofensivas,  mas carregadas de juizos de valor, que moldam a nossa visão arquetípica do mundo e das relações.

Quem ficou pela educação formal, o ensino estandardizado, formatado à medida do Estado-fábrica, produtor de agentes de trabalho, absorveu piosamente a versão claramente redutora da fábula de Esopo, revisitada por LaFontaine, e julga que as formigas são todas trabalhadoras irrepreensíveis e que as cigarras são todas ociosas. Acredita devotamente que a virtude consiste em cumprir ordens e metas.
Mas quem procura atualizar-se em permanência, crescendo e evoluindo em espirais de proporção aurea, reconhece na Aprendizagem ao Longo da Vida, a aplicação algorítmica da sequência de Fibonacci e descobre que, na Natureza, existe um fator de imprevisibilidade, longe ainda de estar ao alcance de ciência.

O fator que, por exemplo, fez da cigarra Salgueiro Maia o herói português; aquele que impeliu uma jovem cigarra algarvia a abraçar um polícia em Lisboa; aquele que levou as cigarras espanholas a sentarem-se na Praça Neptuno. Quem aprende para além do que lhe é ensinado, descobre que o canto da cigarra é a expressão de uma alma maior, a de Géia, calorosa, generosa e abundante, traduzida, também, nos Cantos dos Lusíadas , Livro do Desassossego e Pedra Filosofal da nossa Alma Lusa.
"A superioridade do sonhador consiste em que sonhar é muito mais prático que viver, e em que o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasto e muito mais variado do que o homem de ação. Em melhores e mais diretas palavras, o sonhador é que é o homem de ação." Fernando Pessoa, Livro do Desassossego

Pois.
Mas incomoda.
Incomoda os que têm dogmas engramados.

Para que conste, a verdadeira história da cigarra e da formiga não acaba como nos foi repetidamente ensinado. A formiga NÃO fechou a porta à cigarra;  acolheu-a e alimentou-a.
Em troca, a cigarra animou os serões de inverno e aprenderam as duas a dançar...

Je chantais, ne vous déplaise.

Vous chantiez? j'en suis fort aise:

Eh bien! dansons maintenant. 


1 comentário:

Margarida Mateus disse...

Absolutamente fantástico. Gosto muito da escrita da Anabela... é como que estar a aprender e a apreender perspetivas em Arte... onde as palavras tocam o Belo... e sente-se o sentido... gosto mesmo muito e que o seu sentido de partilha a possa levar à publicação de uma obra... um livro. Abraço de esperança agradecida,
MM