quinta-feira, 26 de março de 2009

Relato: Profissional RVC

Tenho, por hábito, de tempos a tempos, colocar neste espaço relatos de adultos que terminam o seu processo de RVC. Hoje decidi colocar um relato de uma profissional, principalmente pelo seu conteúdo. Aqui fica:

"Hoje tive uma experiência marcante, para juntar a tantas outras que vou vivendo nos percursos da vida. Hoje bateu-me à porta um senhor. Estava muito sujo, de barba por fazer, primeiro pensei (no pensamento estúpido que vamos formando na rotina dos dias...) que se tivesse enganado. Mas não, era mesmo para o Centro, percebi-o assim que se sentou e me disse, com um olhar vivo e brilhante, que há muito tempo que ouvia um anúncio na rádio por "causa de se voltar à escola". O mesmo olhar que reconheço sempre em quem tem curiosidade, em quem quer aprender, sempre mais e mais, contra o fatalismo da idade ou das convenções sociais. O senhor não tem quaisquer habilitações, não sabe ler nem escrever, apenas assinar o nome numa escrita rudimentar, que fez questão de me mostrar no novíssimo Cartão do Cidadão. Pegámos nesse mesmo cartão para tentar ver o que sabia o senhor afinal. Soletrou com orgulho: P-O-R-T-U-G-A-L. Não sabe juntar as letras, por isso, apesar de as soletrar, não sabia que ali estava escrito o nome do seu país. Fiquei esmagada. Não por ser a primeira vez que contactava com uma pessoa analfabeta ou por achar que não existem (há quem diga por aí que o analfabetismo em portugal é "residual..."). Felizmente vivo no mundo real, real demais. No mundo em que há um senhor de 68 anos que me diz: "tem-me feito mais falta ler e escrever do que o pão". No mundo em que no ano passado, recentemente, não foi autorizado um curso de alfabetização para 9 (N-O-V-E) pessoas. Porque eram só N-O-V-E. Não hei-de descansar enquanto essas nove pessoas, mais o senhor Artur, mais outras que estejam "perdidas" noutras instituições tenham a OPORTUNIDADE de ter o direito fundamental de aprender a ler e a escrever. Quando lhe disse que, neste momento, não tinha resposta para lhe dar, o senhor chorou e disse "nós é que precisávamos! tem-me feito tanta falta! eu não pude mesmo estudar, com 4 anos já andava a criar cabras". Este é o Portugal real, fora dos gabinetes onde se decide a certificação e/ou a qualificação. Deixei-me estar com o senhor Artur, sem olhar para o relógio, sem pensar em sistemas informáticos que tentam controlar o nosso tempo. E naquele momento ouvi aventuras vividas em França, em Espanha, e a dureza da vida que o afastou da escola, que agora procura, com 68 anos, disposto a ir "para onde for" para aprender a ler e a escrever. "Vai aprender", respondi-lhe.»
Fonte: aqui.

1 comentário:

Mafalda Branco disse...

Olá João!
Confesso que fiquei muito surpreendida ao abrir hoje o seu blog e encontrar este relato de uma situação tão especial para mim. Obrigada! :)
Seria bom que as políticas actuais de Educação de Adultos incluíssem igualmente uma política de alfabetização, o que nã está a acontecer, pelo contrário. Como referi, às vezes parece que já não há analfabetos em Portugal. Isso não é verdade, aliás, basta olhar as estatísticas, sobretudo num concelho pequeno do interior como aquele em que trabalho. Há muitas pessoas na cada dos 40 anos que não sabe ler nem escrever. É a verdade, conheço-as. E que oportunidades estão a ter essas pessoas? Já não falo sequer de qualificação, mas de inclusão (algo de que se fala muito, mas na prática pouco se faz)! É horrível para um profissional não conseguir dar resposta a situações deste género. Acredito, no entanto, que se as várias instituições se unirem e fizerem pressão talvez se consiga uma resposta, talvez!... Depois de vir essa resposta, há que resolver outra questão... os transportes! A maioria destas pessoas não tem carta de condução para se poder deslocar, e nem sempre os municípios aceitam colaborar connosco para transportar os adultos... São uma série de constrangimentos que fazem com que neste momento as pessoas que não sabem ler nem escrever sejam, talvez, as mais excluídas e marginalizadas pela sociedade!... Vamos ter esperança que a situação se altere e que alguém se lembre destas pessoas! Só o facto de se falar nesta questão pode ajudar e muito!
Bom trabalho!
Mafalda Branco